Investimento em tecnologia dirigida a portadores de deficiência esbarra na falta de interesse e potencial econômico
Vista de fora, a discreta construção levantada junto ao jardim da casa, emoldurada por tijolos à vista, poderia passar facilmente por um depósito de materiais domésticos ou uma despensa. É ali dentro, porém, em um misto de escritório e laboratório improvisados, que a técnica em neuroanatomia Michele de Souza passa o dia – e boa parte da madrugada – desenvolvendo próteses eletrônicas, programas de computador e outras tecnologias voltadas para pessoas portadoras de deficiência. A moradora de Pinhais integra uma estirpe ainda pouco reconhecida de desenvolvedores idealistas que, sem o aporte de recursos públicos, lançam-se em busca de parcerias com o setor privado ou tiram dinheiro do próprio bolso para bancar produtos e serviços voltados a um público bem específico, carente de equipamentos acessíveis e de baixo custo.
A trajetória de Michele é emblemática não somente pelos resultados já atingidos, mas também pelo gatilho que a levou a investir esforço e dinheiro na área. Diagnosticada com Síndrome de Asperger – uma variante do autismo – aos 13 anos, começou a estudar programação aos 14. Fez mais de 50 cursos em áreas complexas como biônica, cibernética e neuroengenharia. Já atuava com desenvolvimento de sistemas e produtos quando viu a companheira, Sabrina Belon, ser diagnosticada com câncer ósseo em uma das pernas, que acabou tendo de ser amputada. Em junho de 2010, Sabrina morreu aos 23 anos de complicações causadas pela doença. Três dias depois, Michele fundou o instituto sem fins lucrativos em sua homenagem e que tem como missão tornar a vida de outras pessoas com necessidades especiais mais fácil e, acima de tudo, mais digna.
“Foi o meu trabalho que me ajudou a segurar a onda em relação à morte da Sabrina. O instituto foi a materialização do sentimento que eu tinha e ainda tenho por ela”, diz. É por meio do Instituto Sabrina Belon que Michele tem desenvolvido projetos de alta tecnologia para medicina, acessibilidade e reabilitação. Outro braço dos esforços de Michele é dedicada à startup Cycor Cibernética, que ela fundou ano passado e reúne 16 técnicos que atuam em home office, também criando produtos e sistemas operacionais. A startup, inclusive, conquistou o primeiro lugar em 2013 no Desafio Senai de Inovação.
Entre os equipamentos desenvolvidos por Michele e seus colegas estão uma cadeira de rodas motorizada, controlada por um joystick, sensor infravermelho ou sopro, e uma mão mecânica de cinco dedos. Cada um dos aparelhos custa cerca de R$ 3,9 mil – a metade do valor de produtos semelhantes oferecidos por outras companhias. Por meio de uma parceria com uma empresa carioca, a cadeira deve passar a ser oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda neste ano, outro projeto mais ambicioso deve ganhar a luz do dia: um exoesqueleto para paraplégicos, que está sendo testado em um paciente. A previsão é que o protótipo custe R$ 20 mil. Todos os aparelhos são, ainda, desenvolvidos com recursos próprios.
“A nossa intenção é mostrar que essas tecnologias podem ser mais baratas e popularizar esses produtos. Hoje há um grande número de pessoas que está fora do mercado de trabalho por falta de acesso à tecnologia assistiva”, resume Michele.
Empresas ampliam uso de equipamentos
Com dificuldades para conseguir recursos públicos e capitalizar os produtos voltados à tecnologia assistiva, pequenos empreendedores têm adotado a mesma estratégia: expandir o uso dos produtos para outras áreas, a fim de chamar a atenção de investidores privados. É o caso do sensor para vagas especiais do engenheiro curitibano Sergio Yamawaki, que poderá ser utilizado em estacionamentos de condomínios, pontos de táxis, hospitais e clínicas. “Não adianta focar só em uma área [a acessibilidade] e depois não conseguir se manter”, resume.
A estratégia foi recomendada inclusive pelo superintendente da Área de Fomento e Novos Negócios da Finep, Paulo Resende, em um fórum sobre acessibilidade promovido pelo CREA-PR, no mês passado. “Quando é que as tecnologias assistivas vão atender necessidades de outros setores, para atrair investimentos e aliados? Não podemos fazer ciência e inovação para nós mesmos”, disse Resende, na ocasião.
A startup curitibana NextOS, desenvolvedora de um software para automação residencial, está em fase final de testes para que o programa passe a ser comercializado nas próximas semanas. Por meio de um monitor, o morador visualiza a imagem em 3D de todos os ambientes da casa e, com comandos direto na tela ou via tablets e smartphones, pode acionar equipamentos, abrir janelas e regular a temperatura à distância. Como os comandos também podem ser acionados via voz ou somente com o piscar dos olhos, o potencial para uso de pessoas com mobilidade reduzida é imenso.
O programa está sendo testado com a ajuda da secretária municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Mirella Prosdocimo, que é tetraplégica. Os custos do projeto foram inteiramente bancados por investidores-anjo. “Nossa ideia é ter um produto comercial, que tenha rentabilidade e depois possa ser fornecido de maneira subsidiada para essas pessoas (com deficiências). Temos a maior intenção de ajudar quem realmente precisa, mas antes de tudo temos que manter a empresa viva”, relata o fundador da NextOS, Guile Lindroth.
Notas
Recursos
Burocracia dificulta acesso de pequenos aos financiamentos
Iniciativas como a da desenvolvedora Michele de Souza, de Pinhais, têm penado para alcançar o público final justamente pela falta de recursos. Dinheiro há, mas ele não está acessível aos pequenos empreendedores. A Finep, empresa financiadora de inovação e pesquisa do governo federal, lançou ano passado um edital para selecionar projetos voltados exclusivamente à tecnologia assistiva, que serão desenvolvidos por empresas em parceria com Instituições de Pesquisa Científicas e Tecnológicas (ICTs). Entre os requisitos, porém, estavam as obrigações das empresas terem de bancar, no mínimo, 5% dos aportes necessários para o projeto e apresentarem “situação econômico-financeira satisfatória”, levando em conta os últimos três anos. O resultado preliminar da seleção, que disponibilizará R$ 20 milhões a fundo perdido, contemplou 31 propostas – apenas uma do Paraná.
“Tentei várias possibilidades, como agências de fomento municipal e estadual e o próprio Finep, mas não tinha a menor condição de me encaixar nos formatos dos editais, que priorizam empresas de grande ou médio porte que já tenham faturamento crescente. Isso impossibilita que pessoas com ideias inovadoras deem o primeiro passo”, lamenta o engenheiro mecânico Sergio Yamawaki, presidente da Comissão de Acessibilidade do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Paraná (CREA-PR).
O projeto de Yamawaki, uma espécie de sensor eletrônico que denuncia motoristas que param, sem autorização, em vagas para deficientes e idosos, só saiu do papel após o aporte de investidores privados. No total, o projeto custou R$ 500 mil. Os esforços agora estão em tentar regulamentar o uso do equipamento para que ele possa ser produzido em larga escala – os carros autorizados para as vagas são identificados por meio de chips.
R$ 3,9 mil é o preço da cadeira de rodas motorizada, controlada por joystick, sensor infravermelho ou sopro, desenvolvida por Michele de Souza. O preço é metade do valor de equipamentos semelhantes produzidos por companhias convencionais.